O baque da cruz
Raymundo peregrina com a imagem de Nossa Senhora e reza o Rosário em Pitangui e Brumado. Durante as orações, participa misticamente de um momento do Calvário, quando o Cristo deixa cair a cruz. “Escutei um baque surdo, de madeira, parecendo um tronco que tivesse caído ao chão e um longo gemido: ‘Eli… Eli…’”
17 de julho de 1993
Fomos convidados, eu e os Missionários do Coração Imaculado, a levar a imagem de Nossa Senhora a Pitangui e, em seguida, a Brumado, num sábado ensolarado e bonito do dia 17 deste mês, oportunidade em que rezaríamos o Rosário e divulgaríamos as mensagens.
Após termos rezado dois Terços, um na Matriz do Pilar e outro na Capela do Asilo, fomos a Brumado para completar o Rosário. Eu dirigia a oração comtemplando os mistérios gozosos, conforme pedido de Nossa Senhora, embora no segundo Terço tivesse deixado às pessoas a liberdade da escolha, que em todo caso recaiu sobre os mesmos mistérios.
Na entrada de Brumado, comecei a ouvir uma música leve e suave, e tive a nítida impressão de que era cantada por milhares de vozes. A melodia era estranha e as palavras desconhecidas. Comecei a ficar perturbado com aquilo. Ao descer do ônibus, diversas pessoas nos esperavam cantando, e eu continuava ouvindo aquele coral distante, mas bem perceptível aos meus ouvidos. Pensei que talvez fosse produto do cansaço, e fiquei firme, sem dizer nada a ninguém.
Ao entrar na igreja dedicada a São Gonçalo, dirigi-me ao Santíssimo. Ajoelhei-me pedindo a bênção para começarmos o último Terço do dia. Neste momento, inexplicavelmente, escutei nítida e forte uma voz masculina e dócil:
– Sofro com você.
Eu, quase descontrolado, levantei-me para dar início à cerimônia, dividido entre o canto das pessoas e o maravilhoso coral que escutava claro e límpido. Desconcertado, dirigi-me às pessoas dizendo, sem pensar, que meditaríamos os mistérios dolorosos. Por quê, se Nossa Senhora havia pedido para meditarmos neste mês os mistérios gozosos? Imaginei depois que esta era a vontade dela para aquele momento tão especial.
Eu tentava controlar a situação, mas estava cada vez mais difícil, porque a todo momento eu me distanciava de tudo aquilo, das pessoas, da igreja, dos cantos, dos comentários etc. Ao terminar o segundo mistério, por instantes tudo se apagou parcialmente na minha mente. Eu estava vendo coisas duplas, pessoas na minha frente e, ao mesmo tempo, um local estranho. Uma pequena rua, estreita e quase em ladeira. O calçamento com pedras grandes, deixando de vez em quando transparecer degraus e desníveis, e eu, com medo de escorregar nas pedras, procurava andar devagar. As paredes das casas eram também alicerçadas em grandes pedras, onde, das trincas e orifícios, brotavam musgo e vegetação pequena.
De repente, comecei a escutar centenas de vozes falando e gritando, parecia uma turba nervosa vindo na minha direção naquela rua estreita, e eu, sem poder me esconder ou desviar, me via desprotegido e apavorado. As pessoas passavam por mim gritando numa língua estranha e sem sentido. Umas choravam, outras riam, outras falavam, falavam sem parar. Elas traspassavam-me, mas eu não sentia seus corpos. Nenhum impacto ou atrito era perceptível, elas apenas passavam. Em dado momento, numa fração de segundo, escutei um baque surdo, de madeira, parecendo um tronco que tivesse caído ao chão e um longo gemido:
– Eli… Eli…
Foi uma sensação horrível e desesperadora. Eu não via nada, mas estava sentindo na pele o sofrimento de alguém que não sabia quem era. A multidão por instantes ficou estática e muda, e passei a escutar apenas os gemidos e o esforço daquela pessoa para continuar a terrível caminhada.
Pouco depois tudo recomeçou. As pessoas passaram por mim, e eu as perdi de vista e me vi de novo sozinho naquela rua estreita.
Quando tudo terminou, estava de volta à igreja completamente descontrolado, tentando de toda forma meditar os mistérios do Terço e não deixar ninguém perceber o que estava acontecendo. Quando a cerimônia terminou, eu, cansado, com dor de cabeça e com uma sede enorme, apenas consegui falar:
– Por favor, me deixem sentar um pouco e me arranjem um pouco de água.
Referência: LOPES, Raymundo. O baque da cruz. In: LEMBI, Francisco (Org.). Diálogos com o infinito. Belo Horizonte: Sim, 2007. p. 45-46.