Temos a graça de publicar uma entrevista, em exclusivo para o Dies Iræ, do Arcebispo Carlo Maria Viganò, a quem, desde já, agradecemos por toda a amabilidade demonstrada e, sobretudo, pela eloquência com que nos brinda ao analisar questões tão delicadas e complexas, garantindo-lhe a nossa oração pelo seu ministério e pelo inexcedível combate ao serviço da Verdade.
Por Dies Irae
terça-feira, 21 de abril de 2020
Excelência, muito obrigado por nos conceder esta entrevista. Estamos a braços com a epidemia do COVID-19 que, nos últimos meses, tem vindo a condicionar a vida de milhões de pessoas e, inclusive, a provocar a morte a tantas outras. Face a esta situação, a Igreja, por meio das Conferências Episcopais, decidiu praticamente encerrar todas as igrejas e privar os fiéis de acederem aos Sacramentos. No passado dia 27 de Março, perante uma Praça de São Pedro vazia, o Papa Francisco, agindo de forma manifestamente mediática, presidiu a uma presumida oração pela humanidade. Foram muitas as reações à forma como o Papa conduziu aquele momento, sendo que uma delas procurou associar a presença solitária de Francisco à Mensagem de Fátima, designadamente ao Terceiro Segredo. Concorda?
Permita-me, antes de mais, que lhe diga que estou muito feliz por conceder esta entrevista aos fiéis de Portugal, que a Santíssima Virgem prometeu preservar na Fé também nestes tempos de grande provação. Sois um povo com uma grande responsabilidade, porque podereis, em breve, ter de proteger o sagrado fogo da Religião, enquanto as outras Nações se recusam a reconhecer Cristo como seu Rei e Maria Santíssima como sua Rainha.
A terceira parte da mensagem que Nossa Senhora confiou aos pastorinhos de Fátima, para que eles a entregassem ao Santo Padre, permanece em segredo até hoje. Nossa Senhora pediu para ser revelada em 1960, mas João XXIII publicou, a 8 de Fevereiro daquele ano, um comunicado em que afirmava que a Igreja «não quer assumir a responsabilidade de garantir a veracidade das palavras que os três pastorinhos dizem que a Virgem Maria lhes dirigiu». Com este afastamento da mensagem da Rainha do Céu, deu-se início a uma operação de encobrimento, evidentemente porque o conteúdo da mensagem revelaria a terrível conspiração dos seus inimigos contra a Igreja de Cristo. Até há algumas décadas, pareceria inacreditável que pudéssemos ter chegado ao ponto de amordaçar também a Virgem Maria, mas nestes últimos anos temos também assistido a tentativas de censurar o próprio Evangelho, que é a Palavra do Seu divino Filho.
Em 2000, durante o Pontificado de João Paulo II, o Secretário de Estado, Cardeal Sodano, apresentou como Terceiro Segredo uma versão sua que, em relação a alguns elementos, apareceu claramente incompleta. Não admira que o novo Secretário de Estado, Cardeal Bertone, tenha procurado desviar a atenção sobre um evento do passado, a fim de fazer crer ao povo de Deus que as palavras da Virgem não tivessem nada que ver com a crise da Igreja e com o conluio entre modernistas e maçonaria realizado nos bastidores do Vaticano II. Antonio Socci, que investigou exaustivamente sobre o Terceiro Segredo, desmascarou este comportamento malicioso da parte do Cardeal Bertone. Por outro lado, foi o próprio Bertone a desacreditar fortemente e a censurar Nossa Senhora das Lágrimas de Civitavecchia, cuja mensagem concorda perfeitamente com o que Ela disse em Fátima.
Não esqueçamos o ignorado apelo de Nossa Senhora para que o Papa e todos os Bispos consagrassem a Rússia ao Seu Imaculado Coração, como condição para derrotar o Comunismo e o materialismo ateu: consagrar não “o mundo”, não “aquela nação que Ela quer que Lhe consagremos”, mas “a Rússia”. Custava tanto fazê-lo? Evidentemente que sim, para aqueles que não têm um olhar sobrenatural. Preferiu-se percorrer o caminho da distensão com o regime soviético, inaugurado precisamente por Roncalli, sem compreender que sem Deus não é possível paz alguma. Hoje, com um Presidente da Confederação Russa que certamente é Cristão, o pedido da Virgem poderia ser atendido, evitando posteriores infortúnios para a Igreja e para o mundo.
O próprio Bento XVI confirmou a atualidade da mensagem da Virgem, apesar de – segundo a interpretação difundida pelo Vaticano – se dever considerar cumprida. Quem leu o Terceiro Segredo disse claramente que o seu conteúdo diz respeito à apostasia da Igreja, iniciada precisamente no princípio dos anos sessenta e que, hoje, chegou a uma fase tão evidente que pode ser reconhecida por observadores seculares. Esta insistência quase obsessiva sobre questões que a Igreja condenou sempre, como o relativismo e a indiferença religiosa, um falso ecumenismo, o ecologismo malthusiano, a homoeresia e o imigracionismo, encontrou na Declaração de Abu Dhabi o cumprimento de um plano concebido pelas seitas secretas desde há mais de dois séculos.
Em plena Semana Santa e no seguimento do funesto Sínodo sobre a Amazônia, o Papa decidiu instituir uma comissão para debater e estudar o diaconado feminino na Igreja Católica. Crê que se pretende, assim, abrir caminho para uma clericalização da mulher ou, por outras palavras, para uma tentativa de adulteração do Sagrado Sacerdócio instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo em Quinta-Feira Santa?
A Ordem Sagrada não pode, nem nunca poderá ser modificada na sua essência. O ataque ao Sacerdócio esteve desde sempre no centro de ação dos hereges e do seu inspirador, e é compreensível que assim seja: atingir o Sacerdócio significa destruir a Santa Missa e a Santíssima Eucaristia e todo o edifício sacramental. Entre os inimigos jurados da Ordem Sagrada, não faltaram sequer os modernistas, obviamente, que, desde o século XIX, teorizavam uma igreja sem sacerdotes, ou com sacerdotes e sacerdotisas. Estes delírios, antecipados por alguns expoentes do Modernismo em França, ressurgiram subtilmente no Concílio, com a tentativa de insinuar uma qualquer equivalência entre o Sacerdócio ministerial, derivante da Ordem Sagrada, e o sacerdócio comum dos fiéis, derivante do Batismo. É significativo que, precisamente a jogar sobre este desejado equívoco, também a liturgia reformada tenha sido afetada pelo erro doutrinal da Lumen gentium, acabando por reduzir o Ministro ordenado a simples presidente de uma assembleia de sacerdotes. Em vez, o sacerdote é alter Christus, não por designação popular, mas por ontológica configuração ao Sumo Sacerdote, Jesus Cristo, a quem deve imitar na santidade de vida e na dedicação absoluta também representada pelo Celibato.
O passo sucessivo deveria necessariamente cumprir-se, se não com a eliminação do Sacerdócio em si, pelo menos tornando-o ineficaz, alargando-o às mulheres, que não podem ser ordenadas: exatamente o que aconteceu nas seitas protestantes e anglicanas, que hoje também experimentam a embaraçante situação de ter bispas lésbicas na chamada igreja de Inglaterra. Mas é evidente que o “pretexto” ecumênico – ou seja, o aproximar-se às comunidades dissidentes e adquirir até os erros mais recentes – tem na base o ódio de Satanás ao Sacerdócio e conduziria inevitavelmente a Igreja de Cristo à ruína. Por outro lado, também o Celibato eclesiástico é objecto do mesmo ataque, porque é próprio e distintivo da Igreja Católica e constitui uma preciosa defesa do Sacerdócio que a Tradição zelosamente guardou ao longo dos séculos.
A tentativa de introduzir uma forma de ministério ordenado feminino na Igreja não é recente, não obstante as repetidas declarações do Magistério. Até João Paulo II definiu, de modo inequívoco, e com todos os requisitos canônicos de uma declaração infalível ex Cathedra, que não é absolutamente possível questionar a doutrina sobre este argumento. Mas como se pôde servir do Catecismo para declarar a pena de morte “não conforme ao Evangelho” – algo inédito e herético –, hoje está-se a tentar criar ex novo uma qualquer forma de diaconado feminino, evidentemente preparatória a uma futura introdução do sacerdócio feminino. A primeira comissão criada por Bergoglio há alguns anos, deu parecer negativo, confirmando o que, para além disso, nem deveria ser objecto de discussão; mas se aquela comissão não pôde obedecer aos desejos de Francisco, isto não significa que não possa fazê-lo uma outra comissão, cujos membros, escolhidos por ele, sejam mais “dóceis” e desinibidos na demolição de um outro pilar da Fé católica. Não duvido que Bergoglio disponha de métodos persuasivos e que possa exercer formas de pressão sobre a comissão teológica; mas estou igualmente certo de que, na eventualidade que este órgão consultivo devesse dar um parecer favorável, não se deveria necessariamente chegar a uma declaração oficial do Papa para se ver multiplicar diaconisas nas Dioceses da Alemanha ou da Holanda, no silêncio de Roma. O método é conhecido e, por um lado, permite atingir o Sacerdócio, e, por outro, dar um cómodo álibi àqueles que, dentro da estrutura eclesial, poderão sempre apelar ao facto de que “o Papa não permitiu nada de novo”. Fizeram o mesmo ao autorizar as Conferências Episcopais a legislar autonomamente sobre a Comunhão na mão, que, imposta pelo abuso, hoje se tornou prática universal.
Deve-se dizer que esta vontade de promover as mulheres na hierarquia trai a inquietação de seguir a mentalidade moderna, que tirou à mulher o seu papel de mãe e esposa para desestruturar a família natural.
Recordemos que esta abordagem dos dogmas da Igreja confirma um facto inegável: Bergoglio adaptou a chamada teologia da situação, cujos lugares teológicos são factos ou assuntos acidentais: o mundo, a natureza, a figura feminina, os jovens… Teologia esta que não tem como próprio centro fundante a verdade imutável e eterna de Deus, mas, pelo contrário, parte da constatação da urgência obrigatória dos fenômenos para dar respostas coerentes com as expectativas do mundo contemporâneo.
Excelência, segundo historiadores de reconhecido mérito, o Concílio Vaticano II representou uma ruptura da Igreja com a Tradição, daí o aparecimento de correntes de pensamento que querem transformá-la numa mera “associação filantrópica” que abrace o mundo e a sua utopia globalista. Como vê este grave problema?
Uma igreja que se destaca como nova em respeito à Igreja de Cristo, simplesmente não é a Igreja de Cristo! A Religião Mosaica, ou seja, a “igreja da antiga lei”, querida por Deus para conduzir o Seu povo até à vinda do Messias, teve o seu cumprimento na Nova Aliança e foi definitivamente revogada, no Calvário, pelo sacrifício de Cristo: do Seu lado nasce a Igreja da Nova e Eterna Aliança, que substitui a Sinagoga. Parece que também a igreja pós-conciliar, modernista e maçónica, ambiciona a transformar, a superar a Igreja de Cristo, substituindo-a por uma “neo-Igreja”, criatura deformada e monstruosa que não vem de Deus.
O objectivo desta neo-Igreja não é levar o povo eleito a reconhecer o Messias, como para a Sinagoga; não é converter e salvar todos os povos antes da segunda vinda de Cristo, como para a Igreja Católica, mas constituir-se como braço espiritual da Nova Ordem Mundial e defensor da Religião Universal. Neste sentido, a revolução conciliar teve que primeiro demolir o legado da Igreja, a sua Tradição milenar, da qual extraía a própria vitalidade e autoridade como Corpo Místico de Cristo, para depois se livrar dos expoentes da antiga Hierarquia, e só recentemente começou a propor-se, sem pretensão, para aquilo que pretende ser.
Aquilo a que chama utopia é, na verdade, uma distopia, porque representa a concretização do plano da Maçonaria e a preparação do advento do Anticristo.
Também estou convencido de que a maioria dos meus Irmãos e, mais ainda, a quase totalidade dos sacerdotes e dos fiéis não estão absolutamente cientes deste plano infernal, e que os acontecimentos recentes tenham aberto os olhos a muitos. A sua fé permitirá a Nosso Senhor reunir o pusillus grex em torno do verdadeiro Pastor antes do confronto final.
Para restaurar o antigo esplendor da Igreja, será preciso pôr em causa muitos aspectos doutrinais do Concílio. Que pontos do Vaticano II poria em causa?
Creio que não faltam personalidades eminentes que expressaram melhor do que eu os pontos críticos do Concílio. Há quem acredite que seria menos complicado e certamente mais inteligente seguir a prática da Igreja e dos Papas como foi aplicada com o Sínodo de Pistoia: também nele havia algo de bom, mas os erros que afirmava foram considerados suficientes para deixá-lo cair no esquecimento.
O atual Pontificado representa o culminar de um processo que se abre com o Concílio Vaticano II, desejado no chamado “Pacto das Catacumbas”, ou ainda está numa fase intermédia?
Como é próprio de cada revolução, os heróis da primeira hora acabam frequentemente por ser vítimas do seu próprio sistema, como aconteceu com Robespierre. Quem ontem era considerado o porta-estandarte do espírito conciliar, hoje quase parece um conservador: os exemplos estão à vista de todos. E já há aqueles que, nos círculos intelectuais do progressismo (como o frequentado por um certo Massimo Faggioli, altivo no nome mas dissonante no sobrenome), começam a propagar aqui e ali algumas dúvidas sobre a real capacidade de Bergoglio para fazer “escolhas corajosas” – por exemplo, de abolir o Celibato, de admitir mulheres ao Sacerdócio ou de legitimar a communicatio in sacris com os hereges – quase desejando que ele se afaste para fazer eleger um Papa ainda mais obediente àquelas elites que tinham no Pacto das Catacumbas e na máfia de São Galo os seus adeptos mais inescrupulosos e determinados.
Excelência, atualmente, nós, católicos, sentimo-nos frequentemente isolados pela Igreja e quase abandonados pelos nossos Pastores. O que pode Vossa Excelência dizer aos hierarcas e aos fiéis que, não obstante a confusão e o erro que se estão a difundir na Igreja, procuram perseverar nesta dura batalha de conservar a integridade da nossa Fé?
As minhas palavras seriam, certamente, inadequadas. O que me limito a fazer é repetir as palavras de Nosso Senhor, Verbo eterno do Pai: E Eu estarei sempre convosco até ao fim do mundo. Sentimo-nos isolados, certo: mas não se sentiram assim também os Apóstolos e todos os Cristãos? Não se sentiu abandonado, no Getsémani, até mesmo Nosso Senhor? São os tempos da provação, talvez da provação final: devemos beber o cálice amargo e, mesmo que seja humano implorar ao Senhor que o afaste de nós, devemos repetir com confiança: Não se faça, contudo, a minha vontade, mas a Tua, recordando as Suas reconfortantes palavras: No mundo tereis aflições, mas tende confiança! Eu venci o mundo. Depois da provação, por mais dura e dolorosa que seja, está preparado para nós o prémio eterno, que ninguém nos poderá tirar. A Igreja voltará a brilhar com a glória do seu Senhor depois deste terrível e prolongado Tríduo Pascal.
Mas se a oração é, certamente, indispensável, não nos devemos eximir de combater o bom combate, fazendo-nos testemunhas de uma corajosa militância sob o estandarte da Cruz de Cristo. Não nos deixemos ser apontados, como fez a criada com São Pedro, no pátio do sumo sacerdote: «Também tu estavas com Jesus, o Galileu», para depois negar Cristo. Não nos deixemos intimidar! Não permitamos que se ponha a mordaça da tolerância a quem quer proclamar a Verdade! Peçamos à Virgem Maria que a nossa língua possa proclamar com coragem o Reino de Deus e a Sua Justiça. Que se renove o milagre da Lapa, quando Maria Santíssima deu voz à pequena Joana, nascida muda. Possa Ela, novamente, dar-nos voz também a nós, Seus filhos, que ficámos mudos durante muito tempo.
Nossa Senhora de Fátima, Rainha das Vitórias, Ora pro nobis.
FONTE: http://www.diesirae.pt/2020/04/sois-um-povo-com-uma-grande.html?m=1