Nm 21, 4-9
Esse trecho do Antigo Testamento pode ser visto de duas formas.
I – Essa narrativa nos ensina que, quando ofendemos a Deus, devemos procurar Seu representante na terra, para pedir-lhe perdão. Moisés era o elo entre seu povo e Deus. Hoje temos os sacerdotes, que nos perdoam em nome de Deus. Este perdão, porém, se consuma no ato de contrição, quando buscamos um colóquio com Deus, para manifestar-lhe nosso arrependimento; nisto, não podemos usar de intermediário, pois este gesto é pessoal e deve refletir sinceridade de sentimento.
Vamos recordar uma passagem do Gênesis, quando o homem perde o paraíso, enganado pela serpente. Paraíso era aquele lugar aprazível, cheio de paz, para alegria e felicidade do homem. Mas lá estava, também, a serpente, que mordeu o homem enganando-o, seduzindo-o, levando-o a pecar e conseqüentemente ser expulso dali.
Para que o homem pudesse retornar ao paraíso, Deus quis que ele encontrasse, no seu próprio espírito, no seu dia-a-dia, a felicidade perdida. Isto se aplica a Moisés, quando Deus lhe pediu que retirasse seu povo do cativeiro do Egito. Porém, até que chegassem à Terra Prometida, foram submetidos a uma longa provação (quarenta anos).
"No caminho o povo perdeu a paciência. Falou contra Deus e contra Moisés." Aquele povo saía da escravidão no Egitorumo à Terra Prometida. Mas no caminho se pôs a amaldiçoar, a falar mal de Deus e de Moisés, pecando contra aquele que caminhava com eles e contra aquele que tudo fazia para que a libertação se consumasse.
"Então Deus enviou contra o povo serpentes abrasadoras que morderam e mataram muitos (…) E Deus disse a Moisés: 'Faze uma serpente abrasadora e coloca-a em uma haste. Todo aquele que for mordido e a contemplar viverá.'"
Vimos, então, que o homem se revoltou contra Deus e provocou a Sua ira. Por causa disso a presença da serpente se materializou entre eles. Lá estava ela, novamente; desta vez, porém, ao lado do humano, podendo morder o homem literalmente, isto é, mordendo o seu corpo humano.
Todo esse ensinamento é para entendermos que sempre que buscamos o paraíso perdido, que Deus nos inspira, orienta e ensina, a serpente estará presente para nos morder. Quer dizer, nós ofendemos a Deus porque o caminho de volta a esse paraíso interior, que temos de formar dentro de nós mesmos, é muito difícil, nos exige sacrifícios e perseverança.
Por tudo isso é que muitas vezes, em nosso caminhar terreno, nos opomos aos desígnios divinos e o maldizemos. Na verdade, queremos moldá-lo aos nossos interesses. E quando isto acontece, ficamos perdidos, nos expomos a essa serpente, somos mordidos por ela (o pecado da racionalidade). Chega então o momento de pedirmos perdão, e Deus nos ensina a fazê-lo. Por isso disse a Moisés que colocasse no alto aquela serpente de bronze, para que todos que a olhassem e a contemplassem fossem curados. Uma manifestação pública de fé. Portanto, todo aquele que pedir perdão a Deus será curado das mordidas da serpente, será perdoado de seus pecados.
Moisés intercedeu pelo povo e Deus o atendeu. Foi como dissesse: Vai, então, a teu povo e dize-lhes que me ofenderam e agora deverão me pedir perdão pessoalmente, demonstrando sua fé em mim, seu Deus.
II – Esta passagem nos faz lembrar de que a vacina contra a picada de cobra é feita do próprio veneno da cobra. Para entendê-la melhor, recordemos um pouco da história do povo judeu no Egito.
José, filho de Jacó (Israel), foi vendido por seus irmãos a mercadores e estes o conduziram ao Egito. Seus irmãos disseram ao pai que José fora devorado por um animal feroz. Mas Deus assistia José. Mais tarde ele foi levado ao Faraó, para interpretar os dois sonhos que este tivera e que os magos e sábios do Egito não conseguiram explicar (as sete vacas gordas e as sete magras, as sete espigas belas e as sete mirradas – na verdade, um sonho apenas: os sete anos de fartura e os sete de fome em todo o Egito). José caiu assim nas graças do Faraó, que o fez governador do Egito.
Como sabemos, veio a fome, e com isso Jacó e toda a sua prole veio parar no Egito, sob o amparo de José, formando aí uma linhagem muito grande de hebreus. Ganharam do Faraó terra, onde puderam se fixar, levando seus bens, rebanho… Muitos deles foram postos como administradores dos rebanhos do próprio Faraó. Assim, prosperaram naquele país.
Com o tempo, a presença dos hebreus (filhos de Israel) no Egito tornou-se como uma nação dentro de outra. E um novo rei (Faraó), vendo que a descendência de Israel era mais numerosa e poderosa que o seu povo, tomou medidas para conter o seu crescimento, subjugou-a, impondo-lhe trabalho duro, e disse às parteiras dos hebreus que ao ajudarem as hebréias a darem à luz matassem os que fossem menino, deixando viver apenas as meninas, o que elas não fizeram, temendo a Deus. Então, Faraó ordenou a seu povo que jogasse no rio todo menino hebreu que nascesse.
Na época de Moisés os filhos de Israel, sob o peso da servidão, clamaram a Deus. E Deus os ouviu, lembrando-se de sua Aliança com Abraão, Isaac e Jacó. Estava nos planos de Deus retirar do Egito aquela nação que fez brotar ali, através da descendência de Jacó (Israel).
Vejamos, agora, o que está em Números 21,4-9.
"Os filhos de Israel partiram da montanha de Hor pelo caminho do mar Suf, para contornarem a terra de Edom."
Aquele povo, guiado por Moisés, estava a caminho de um lugar desconhecido, sabia apenas que se libertara do domínio egípcio, para
se fixar em terra própria. A idéia de mar, para os hebreus, representava o desconhecido, o que era de difícil conhecimento. Quando não conseguiam entender alguma coisa, colocavam a figura do mar. Ali, estavam contornando algo desconhecido, perigoso.
"No caminho o povo perdeu a paciência. Falou contra Deus e contra Moisés: 'Por que nos fizestes subir do Egito para morrermos neste
deserto? Pois não há nem pão nem água;…'"
Deus fazia que caminhassem mesmo sem que entendessem bem o porquê. Deus queria que fizessem a Sua vontade. No entanto, os
hebreus questionavam, se revoltavam por não entender a vontade de Deus. Na verdade não temos que entendê-la, mas fazê-la.
A vontade de Deus se apresenta para nós como aquilo que Ele deseja de cada um. E a maioria do que Deus nos pede, nós o percebemos como aquilo que não nos interessa, que não está nos nossos planos, que não nos está racionalmente explicado.
A vontade de Deus é aquilo que se apresenta para nós como o mais difícil, isto porque o que normalmente conhecemos, aprendemos, vivenciamos está ligado à nossa racionalidade e não à espiritualidade. O conhecimento que temos das coisas nos é explicado pela razão. Assim, concebemos e conceituamos as coisas, o certo e o errado, o bem e o mal à luz da razão.
"… estamos enfastiados deste alimento de penúria."
Esse alimento a que se referiam era o maná, o alimento que Deus lhes dava para matar-lhes a fome no deserto; extensivo, num sentido mais amplo, ao sofrimento que era o longo caminhar no deserto. Foram quarenta anos, onde muitos morreram e outros nasceram.
Os hebreus agiram da mesma forma como fazemos hoje, isto é, não gostamos daquilo com que Deus nos alimenta, não queremos o alimento que Deus nos dá. O primeiro alimento que Ele nos oferece é a honestidade, algo muito difícil para nós e rejeitado por muitos. Em seguida temos uma lista, ou seja, os Dez Mandamentos, uma verdadeira cesta básica, indigesta para a maioria, Seus ensinamentos, a Eucaristia… são os alimentos que Deus nos dá, mas que recusamos.
Caminhamos na incerteza de Deus, mas na certeza do nosso racional, por acreditarmos sempre que estamos certos fabricando os nossos próprios alimentos.
"Então Deus enviou contra o povo serpentes abrasadoras que morderam e mataram muitos."
Foi o que Deus lhes fez e faz ainda hoje. Estamos sendo mordidos por serpentes, pelas serpentes da racionalidade.
Por não entendermos os caminhos de Deus, buscamos o entendimento pela racionalidade. Somos, então, mordidos por serpentes, morremos em espírito e nos transformamos em pessoas inexperientes das coisas de Deus. Vivemos a vida que queremos e não a vida que Deus nos propõe.
"Veio o povo dizer a Moisés: 'Pecamos ao falarmos contra Deus e contra ti. Intercede junto de Deus para que afaste de nós estas serpentes.'"
Hoje, também, temos os Moisés. São aqueles que vivem e agem pela espiritualidade; que fazem a vontade de Deus, mesmo sem compreenderem bem o porquê. Apenas obedecem. No entanto, existem as que vivem em torno dos Moisés e que, ao perceberem a ação de Deus, ficam pedindo para que rezem por elas. Como todos fomos mordidos pela serpente, cada um poderá e deverá saber pedir por si mesmo. Contudo, isto não nos impede de rezarmos uns pelos outros.
"Moisés intercedeu pelo povo e Deus respondeu-lhe: 'Faze uma serpente abrasadora…'"
Serpente abrasadora é aquela que convence, é como uma palavra abrasadora, que arrebata.
'…e coloca-a em uma haste. Todo aquele que for mordido e a contemplar viverá.'"
Para os hebreus haste era tudo aquilo que se liga à terra, ao que é sólido, ela fica presa ao chão, mas com a ponta dirigida para o alto. Os hebreus usavam muito o bastão. Na Igreja é costume o papa e os bispos usarem o báculo, para os quais significa: o meu racionalismo está com o pé no chão, mas voltado para Deus.
Aqui, Deus quis dizer o seguinte: Esta palavra que os morde, coloque-a com o pé no chão, olhando para o Céu. Todo aquele que chegar diante desta sábia palavra, olhar para ela e reconhecer que o seu racionalismo deve estar voltado para o Céu, viverá.
"Moisés, portanto, fez uma serpente de bronze e a colocou em uma haste." Bronze é um metal nobre. É dele que se faz o sino, pois produz um som, um sinal que outros metais não produzem. Quando alguém era mordido por uma serpente e depois olhava para a serpente de bronze, ficava curado.
Deus nos deu uma vacina com o veneno da própria serpente, para que fôssemos curados de sua mordida. Falava sobre algo que aconteceria dois mil anos depois: o nascimento de Jesus.
Deus fez tudo isto para nos ensinar que em cima de nossa palavra (do racionalismo), Ele manda a Sua (o Verbo encarnado). Preste atenção! Olhe, pois é pela minha Palavra que você vai curar a sua.
Foi o que fez para aquele povo: sobre a palavra racional, mandou a palavra espiritual. Deus nos deu a receita da primeira vacina que usa o veneno do próprio mal: faça uso da Palavra de Deus, para curar a sua palavra.
Referência: LOPES, Raymundo. A Serpente de Bronze: Nm 21, 4-9. In: LEMBI, Francisco (Org.). O Código Jesus. Belo Horizonte: Magnificat, 2007. p. 35.